terça-feira, 3 de novembro de 2009

O prazer da vida roubado pela recompensa

Hoje aconteceu mais uma vez um fato que preciso compartilhar com todos os leitores. Não é algo bonito (pelo menos, não o acho eu) mas é algo que serve, no mínimo, para que comecemos a refletir sobre a sociedade que estamos construindo para nossos filhos e sobretudo “pensar sobre os filhos que estamos criando para a sociedade”.
Por toda a manhã o telefone tocou insistentemente sendo sempre a mesma pessoa indagando acerca de uma pessoa chamada “Uilma” (nome fictício, claro!). A resposta foi por várias vezes a mesma: “- Desculpe, mas não existe esta pessoa aqui” mas a pessoa sempre retornava a ligação. Depois de muitas ligações, dispus-me saber quem era e qual o motivo de tamanha insistência. A pessoa do outro lado se identificou como “Eva” e disse que teve a sua bolsa roubada e com esta todos os documentos. “-O roubo aconteceu ontem e hoje eu recebi uma ligação de uma pessoa dizendo ter achado meus documentos e esta pessoa me passou este número e me pediu para ir buscar os documentos.” Informei-a que infelizmente não tinha conhecimento de nada do tipo mas fiquei sensibilizado pela situação da pessoa imaginando que poderia ser eu na mesma situação.
Não sou nenhum anjo ou algo do tipo mas resolvi me inteirar do assunto. Perguntei onde a pessoa que afirmava ter achado a bolsa tinha pedido para ela ir buscar. Ela me informou o local e algumas referências e, como ficava apenas a 5 km de minha casa, resolvi ir lá e fazer minha “boa ação do dia”. Com alguma dificuldade, consegui chegar ao local indicado e também encontrei a tal “Uilma”, reunida com alguns familiares. Após identificar-me, indaguei acerca dos documentos encontrados e sobre a possibilidade de me entregarem os documentos para que eu os levasse de volta à sua dona.
Naquele momento a feição deles mudou. Percebendo isto e ainda meio sem entender o ambiente, comecei logo a falar sobre uma possível negociação para a devolução de tais documentos. Após surgir a idéia de recompensa entre eles, o ar ficou novamente “tragável” e eu pude dizer-lhes sobre a falta que fazem os documentos pessoais no cotidiano. Então, a “Uilma” me disse que devolvia os documentos desde que eu me comprometesse a convencer a dona dos documentos a lhe dar algo (dinheiro, certamente) em troca. “-Eu quero que ela veja o valor (R$?) desta ação que eu fiz e que me dê algo em troca”, disse a “Uilma”.
Aquela frase me bateu na cabeça como se fosse uma paulada. Escutei o eco daquelas palavras dentro de mim infinitas vezes e, no caminho de volta pra casa, comecei a refletir sobre esta noção de recompensa para todos os atos que são feitos. Quando cheguei em casa, meu sobrinho estava dando ‘birra’ e não queria comer, só aceitando o alimento quando lhe foi prometido um brinquedo novo (e caro).
Comecei a vasculhar minha memória na busca ações desprovidas de recompensa material. Então me lembrei de uma empresa para a qual eu estava dando consultoria onde um funcionário me disse que só mudaria o modo de trabalhar se a empresa lhe desse um “aumento” de salário. Em outra empresa, o funcionário dizia que não fazia todas as tarefas de forma satisfatória porque não tinha – sequer – plano de saúde.
Afinal, que lição pode se tirar desta breve narrativa? As pessoas “modernas” não sabem o que é fazer algo sem exigir imediata recompensa? Onde iniciamos isto e, mais do que isto, quando vamos parar? Ou melhor, ONDE vamos parar se continuarmos deste modo?
Uma sociedade baseada unicamente na troca tira o prazer da vida. A pessoa que não consegue devolver os documentos que pertencem a outro sem cobrar algo por isto certamente não pode ser considerada “cidadã”. Um funcionário que não consegue fazer o correto, aceitando o pagamento prometido por isto, não pode ser considerado uma “peça essencial” para a empresa. Um condutor que não consegue parar antes da faixa de pedestres, o pedestre que não espera, em cima da calçada, sua vez de atravessar a rua, uma pessoa que finge estar gestante para entrar numa fila preferencial e outros tantos exemplos que assistimos exaustivamente todos os dias são ações que moldam o perfil da sociedade que estamos criando.
Caro leitor, pense sobre as suas ações hoje para que não criemos uma sociedade baseada no “aqui se faz, aqui se recebe!”.

Edilson Aguiais é Vice-presidente do Corecon-Acadêmico e Consultor de Empresas.